Ammes Affar e Akhendi Mullab meus bons amigos. ( Homenagem a Gibran, o grande poeta)

Momento algum espero, rejeito e renego.

Nego, mas não exceto o que venho a ser.

Caído, tristonho ou medonho.

Queria cantar aos vales e regatos minha súplica, queria voltar as serras por onde caminhei em minha infância.

Ao velho cabe relembrar-se do passado com o júbilo de tudo que de belo lhe deu a vida, ao jovem cabe matar o tempo na angústia de ser o amanhã.

Embaixo daquelas imensas amendoeiras e macieiras deixei minhas pegadas quando jovem, ao sabor da água que descia das colinas e não matava apenas a sede de minha matéria e sim de minha alma.

Onde agora repousa meus pensamentos, não sei. Onde agora estão todos que naquele tempo faziam parte de mim ?

Seria o gélido frio da aurora o divisor de nosso tempo ?

Hoje quando vi os flancos das colinas pintados pelo suspiro do inverno, percebi que assim como o inverno rende-se a primavera, rende-se também o homem a seu tempo. Não luta, não foge, nem mesmo sequer grita ao se ver devorado pela enorme boca voraz dos minutos que não mais regressam.

Lembro-me de meu amigo Akhendi Mullab, que costumava falar das coisas simples da vida e mostrar a beleza de tudo em sua minoridade. Ah, como havia magia em conversar com ele..

Quando o diálogo ia longe, se aprofundando nos corredores sombrios da mente do homem, ele me trazia a tona o pensamento, me mostrando como as águas do riacho correm mansas e serenas e nela se abrigam milhões de vidas...e mesmo assim são mansas..Me falava do doce trato das abelhas com suas flores, e do fino tear que fazem os beija flores em seus ninhos...

Com ele tudo era mais fácil...Sabia respeitar cada momento pelo seu aceitamento e entendimento.

Mas chegara um tempo onde tive de partir, pra longe de minhas raízes e pra longe de todos..

Chegara a grande batalha que todo ser deve travar contra o mundo. O tempo de ir em busca do que não está perdido, e sim passará a estar a partir daquele instante de êxodo...

Vi vários mundos e seus costumes, suas religiões, seus povos, suas crianças, jovens, seus velhos e seus mortos..

Olhei em milhares de olhos, em alguns havia vida, em outros havia escuridão e perda.

Passei a ser apenas um hóspede nas estalagens do caminho. Conquistando meu dia pela noite e minha noite pelo meu dia.

Exerci por várias cidades que passei o humilde labor de tecelão..nunca me faltava sandálias a reparar, mantos a remendar e selas a costurar..

Minhas ferramentas eram leves como meus pensamentos. Trazia sempre pouco em minha bagagem.......

Meu manto, alguns retalhos de couro e muito pó da estrada..

Sempre observei em cada cidade o tilintar e murmúrio em volta dos homens. Suas preocupações com as finanças, posses, rebanhos e terras.

De vez em quando um ermitão de cabelos e barbas longas, se fazia presente em minha humilde estalagem.

Onde outrora abrigava ovelhas e cavalos de um senhorio que havia se mudado daquelas terras..

Certa figura notória, tive a graça de conhecer quando andando por entre rochedos em busca de lebres, o percebi fazendo estranhos gestos a certa distância de mim.. Era como se ele brigasse com o crepúsculo executando movimentos muito rápidos e até então magníficos pela idade que aparentava possuir..

Quando notou minha presença, educadamente sorriu, vindo em minha direção, apresentou-se :

Me chamo Ahmmes Affar, ao seu dispor...

Sorri e me apresentei..Eu sou Cadib Effandi..das terras longínquas do líbano...

O que fazes aqui em Doha? Perguntou-me o velho..

Eu saí de minha terra, atravessei toda a Síria, Iraque e Arábia...

Em busca de meus confrontos com aquilo que me fará um homem de conhecimento..

Ahmmes, por sua vez, pensando como que se preparasse as palavras para que eu pudesse compreendê-las, disse em tom claro e forte :

Amigo, todos os confrontos que colocam o homem em um caminho de conhecimento está dentro de si mesmo, embora caminhes toda a vida buscando pelas terras e nos seus diferentes povos, irá você confrontar suas diferenças e costumes. Ainda assim, não seríeis um homem de conhecimento..

Trave a luta consigo mesmo. Até que esteja pronto para enfrentar qualquer nação..

Por rápidos instantes refleti aquelas palavras que me feriram como flecha em chamas atravessando a carne..

Queria rebater, explicar que não há conhecimento sem conhecer outros horizontes, cruzar fronteiras, combater inimigos, quem sabe...

Mas calei-me, por ver que ali havia um homem que embora não ostentasse grandeza física, era imponente em seus olhos, por respeito creio eu, me calei.

Quarenta dias após, Ahmmes encontrou-me em minha estalagem, me saudou e sorrindo perguntou:

Como está sua batalha pelo conhecimento?  E sorriu, como se zombasse de mim...

Sorri junto com ele, por não ver maldade em suas palavras..

Nos sentamos e conversamos por horas..

Ahmmes era de fato um homem impressionante, mais uma vez me senti muito próximo de meu velho amigo Mullab, cujos pensamentos brotavam com a mesma clareza e vida do que no velho ermitão..

Me sentia feliz...

Perguntei ao velho onde ele morava, como vivia, o que fazia naquelas terras longínquas do Qatar..

Fitou-me como que se me atravessasse e pudesse ver por entre mim. Tive a sensação de que ele olhava para uma tira de couro dependurada na parede.

Respondeu-me:  Jovem Cadib, fui a muitos anos atrás "dono" de toda esta terra onde pisas, e também das praias, dos raros lagos de água doce e do pó dos desertos. Contudo, após anos de lutas incessantes para defender a posse destas terras, percebi que nada possuia.Que nada era meu, e contudo, tudo a mim pertencia.

Deixei que os Persas e sua ganância pudessem provar a doce ilusão de que são senhorios de tudo até aonde se pode enxergar.. Deixei a eles a terra e seus escorpiões...

Tomei então a mim, o mundo inteiro. Sou parte dele, vivo como vivem suas criaturas que não são percebidas pelos cegos de dois olhos e de mantos de pura seda...

E chegará um dia onde ei de partir destas terras e seguir pelo horizonte etéreo, tal qual a fumaça da tira de couro que queima atrás de ti.....

De um susto ou de um despertar saí do transe que suas palavras causavam em mim, e vi que o couro havia caído sobre o fogo onde preparava um cozido de raízes e peixe....

Ele ria muito, como uma criança, e após toda a cena, imitou os gestos e a expressão que tive ao tirar o couro da brasa...

Como havia habilidade e destreza naquele corpo frágil, era hipnotizante ver seus rápidos movimentos.


A noite tomava agora sua meia vida, e ofereci hospedagem. Mostrei-lhe uma esteira que dispunha em um canto do cômodo onde eu havia de repousar. Agradeceu solícito e respondeu dizendo que a noite era um momento de puro mistério e tempo para aprendizados, e que se pudéssemos sentir o que paira na noite, então veríamos que poucas são feitas para o descanso da matéria..

Levantou-se após comer uma tigela rasa de meu cozido, agradeceu novamente e partiu...

Durante um bom tempo ele continuou a me visitar, e passamos a ser amigos..

Porém, ouve um tempo em que meses se passaram sem que eu avistasse Ahmmes. Sentia sua falta..

Resolvi procurar por ele. Andei pelos desertos e pelas praias e não mais avistei meu velho e novo amigo..

Resolvi perguntar as pessoas na vila de Doha se conheciam o velho Ahmmes Affar, mas foi em vão, pois todos espantosamente negavam ter conhecido ou ao menos ter ouvido seu nome por entre a vila e suas redondezas...

Semana após semana procurei meu novo amigo, pensei que pudesse ter sido devorado por algum animal, picado por alguma serpente do deserto, ou adormecido a beira da praia e partido como tal fumaça que um dia citou..

Mas para minha surpresa, eis que via ali defronte da trave da porta seu manto já gasto pelos anos, suas sandálias e seu alforje. Não entendi, mas como havia pequena fonte próximo a minha tenda, imaginei que tivesse ele ido apanhar um pote com água. Mas porque as túnicas dependuradas ?

Fui até a fonte e nada encontrei além desta frase escrita em velho pergaminho :

"Caro amigo Cadib Effandi, estou agora disperso no horizonte, vejo o que mais ninguém vê, pairo no ar e miro a imensidão, vejo agora as magníficas colinas e cedros de sua terra, vejo o teu Líbano...

Faço votos para que um dia alcance seus anseios, que são puros..que não são feitos de pérolas ou de metais

e sim de calmaria e sabedoria. Se queres saber, parta destas terras, pois jaz aqui o medo a ganância e a ingratidão. Haverá conflitos em breve, conflitos onde não há honra em combater..

O conhecimento está nos teus suspiros aliviados de repousar por entre as colinas verdes e macieiras de sua amada Beirute...Sinta novamente a relva por entre seus pés e veja o desabrochar das rosas..

Seu aterno amigo..Akhendi Mullab"..

Estremeci todos meus nervos ao ver que Ahmmes Affar havia assinado com o nome de meu velho e caro amigo Akhendi Mullab. Não havia sequer uma sombra de raciocínio humano que me fizesse compreender tal feito....

Enfim, ainda sem raciocinar como se dera tal magia, voltei e vi que as vestes agora eram cinzas, e que um pássaro negro e brilhante pousara no topo da velha tenda..

Com seu grasnar agudo e potente saiu pelos ares por sobre o oceano..

Jamais compreendi tal augúrio...

Hoje em  minha pátria, aos meus 101 anos de busca ainda estou sentado sobre o velho cedro da estrada que leva ao interior da vila de Beirute..

Meus amigos já se foram e esperam ansiosos pela minha presença..

E quando meus pés não mais no chão deixarem seus rastros, seguirei ao encontro deles, ao encontro de Akhendi Mullab e Ahmmes Affar, e tantos outros que habitam meu velho coração..

Bruno B.

O Aliado


Após adormecer, me sentei numa vereda, coberta pelas sombras que a lua fazia nas nuvens cobrindo as estrelas do céu, tal qual um véu fino como caprichosa teia de aranha.

Reparava que tudo se movia em uma dança acompanhando a canção da brisa noturna.

A vida da noite era assustadora, com suas garras sufocava o reinar do dia.

Ao meu lado sentou-se um imponente jaguar, que me fitou com olhos tão profundos quanto os mares e me questionou :

Por que tremes ? Me temes ?

Temes em me temer ?

Estático, respondi :

Não temo, apenas minhas vestes tremem ao carinho da brisa..

Estou a procura do que perdi nestes campos durante um dia, onde o sol reinava pleno com suas energias soberanas. Quero estar só.

Belo e vigoroso jaguar, não quero tua companhia, reverencio tua grandeza e sabedoria. Mas por agora preciso apenas ter com a solidão.

Eu sou a solidão, disse o jaguar.

Sou o que procuras, sou quem te acompanha, sou o que foi perdido, banido e desgarrado.

Estive por estas terras desdo o início dos tempos, fui amado, odiado e temido.

Caminho quando os povos caminham. Permaneco a espreita dos seus passos quando páram.

Eu sou o medo e a coragem. Eu sou a sombra da humanidade. Sou a natureza morta e também viva. Sou o coveiro dos sonhos não realizados e do amor não correspondido.

Recolhi meus pensamentos que tocavam as margens de um lago na curva de uma escarpa e me detive em observar o magnífico ser.

Seus pêlos, cintilavam como o mais intenso firmamento. Suas garras traziam as derrotas e as vitórias que se arrastavam pelos séculos. Seus músculos denotavam a imponência de exércitos e legiões. Suas presas eram como estacas, sólidas e afiadas cortando o véu da noite.

Seus olhos eram como o cosmo, via neles dependurados os planetas e as migrações de povos por entre suas dimensões.

Ah, eu o temo, pelo que és e pelo que sou, confessei ao jaguar.

És o homem, és espécime em batalha desenfreada contra aquilo que lhe traz o sopro.

Sois aquele que carrega a morte e a vida em suas entranhas. Por isso és um ser vivo, és a grandeza e mesmo assim és a involução.

Teus semelhantes me conhecem, em minhas muitas formas. Me caçam com suas antiquadas armas, me desejam e me repelem.

Sou seu aliado e também seu algoz.

Vá, pois não há nada mais perdido por estas terras que são minhas. Encontrar-se-á com seu destino a sete léguas daqui.

Despedi-me curvando tal qual o vime curva-se com a tempestade e parti..

Após sete léguas, voltando a ver e sentir através do cárcere de carne e ossos vi minha face ante ao espelho já gasto pelos anos de procura entre seus mistérios....



Bruno B.

Apenas era dor, algo intrínseco, amor marginal pós moderno e surrealista..

Apenas foi sensato, frio e rígido, amor estranho e frígido..

Apenas era sonho, imaturo jovem e medonho, amor de anjo, vazio sem espaço, cabelos sem embarasso..

Apenas era medo, amor e perda logo cedo...

Apenas virou ódio, rancor ironia e remorso, amor trêmulo e vadio, ação e ócio..

Apenas era frio, calor sem alma, vento sem brisa, animal no cio, amor ausente tal qual culpa em bandido...

Apenas era eu, mala na porta, roupa amassada, amor de plebeu...



Bruno B.

Qual a voltagem que liga seus sentidos ?

Qual a densidade do óleo de suas veias ?

Existe quanto de ácido em sua saliva ?

Quantos parafusos foram necessários para apertar seu coração ?

De onde vem a fumaça que respiras ?

Este estranho adorno de aço em seus pés, não lhe traz angústia ?

Que malha é essa que chamas de pele ?

Estas correntes que descem feito fios de cabelo não lhe ferem a face ?

Lâminas que usas feito unha me cortaram em dois pedaços...que chamo agora de eu vazio...



Bruno B.

O fraco canto do sorriso parece agora um sino que soa ao longe cheio de melancolia e indecisão...Não sabe ao certo porque soa, se para chamar as almas perdidas de poetas e errantes ou simplesmente por existir..

Havia uma imagem no canto do olho, que parecia ser um destino em meio a névoa pálida da última noite em que vi seu vulto a beira da tortuosa estrada que levava a velha morada dos sonhos.

Sempre pude notar com clareza notória que tudo estaria deixando de existir a cada dia, mas a cada dia vencia também a eternidade, juntando pedaços de nós, pedaços do que somos, nos transportando para outra dimensão, sagrada em nossos corações.

Não sei porque o mesmo pássaro ainda me segue, entoa sem cessar seu belo trinar, me observa a fitar minha angústia.

Seria ele um anjo escondido sobre penas de verde intenso ?

Ou um anjo mau que usa as cores para entorpecer nossos sentidos ?

Só sei que o vejo ainda..

E ainda carrego minhas pedras na mão...

Pássaro mau, pássaro bom, cuide-se...

A qualquer momento de indecisão, atirarei minhas pedras ou aprenderei a voar contigo.



Bruno B.

Sinto que irei logo ao teu encontro, embora estejas ainda tão distante e sem ouvir meus passos.

Onde estás ? As folhas caem com o vento na tua terra ?

O sol que vemos por aqui é o mesmo que beija tua face quando acordas ?

Procurei algo em mim quando vi tudo desmoronar e senti o vazio deixado por alguém.

Me sinto escondido dentro de alguma árvore em um bosque distante.

Até que siga sem pensar muito sobre as milhas que enfrentarei, sei que tudo será tão rápido quanto o pensamento. Saberei quando a hora chegar.

Minhas coisas estão prontas. Levarei comigo somente alguns bolsos vazios e um coração aberto, mesmo que ainda vertendo meu sangue sentido.

Que os ventos me deixem perdido e me coloquem no caminho por onde minhas pegadas tocarão as tuas.

Vou partir....


Bruno B.

Aquele quem era ? Egoísmo nato

Se, passas sem perceber a maldade na face dos homens então és como eles.

Se pretendes viver a sombra de seu próprio sossego então és fraco e a derrota está por vir.

Freqüentava os mais escuros porões e hoje anda sobre a escuridão dos palácios, és hipócrita então.

Banhava-se nas águas gélidas dos riachos que desciam das montanhas, hoje se escalda nas tinas com flores e ervas para tentar tornar-se por fora o que jamais o interior lutou por conquistar.

Com os pés descalços tocava a grama macia e verde, cuidava por não pisotear as flores do quintal, hoje com seus sapatos entrelaçados com o mais fino couro esmaga as formigas e flores do caminho.

Há correntes que lhe prendem a tudo que não importa, há um véu que cobre teus olhos e não lhe deixam ver seu destino.

Foge, luta, resiste, delira e reflete. A estrada é longa e árdua, não se pode mais respirar nestes ares densos onde habita hoje teu coração.

Volta então, pisa o chão, sinta o calor da terra a subir pelo seu corpo, respira o perfume da brisa noturna. Deitai nas claras águas que acompanham sinuoso rabisco do rio.

Vês que os homens têm o mal em suas faces? E o bem, bem enterrado num frio jazigo no peito?

Abra a porta de seu porão e resgata teu eu, sozinho e deixado por todos estes anos a esperar por ti.

Quebrai as correntes com a força de um sorriso e contai as árvores por onde andaste.

Mas carregará ainda por longos anos o véu tênue e sombrio amarrado ao pescoço, talvez como lembrança do que poderá se tornar se um dia esquecer-te de quem és.


Bruno B.